Tuesday, September 9, 2008

Efemeridade


Sentia alívio enquanto a agulha lhe penetrava a pele fina sobre os ossos. Alívio porque aquela dor era externa e podia controlá-la. Conforme a agulha ia seguindo as linhas do decalque nas costas, a dor ia-se difundindo e misturando com a que as suas memórias traziam. A pele luzia vermelha realçando as negras formas da tatuagem. Cada nova investida da agulha levava-o mais fundo, a mais recordações. Pequenas lágrimas rolavam-lhe pela face cobrindo o chão de constelações de sal e mágoa.
O olhar profundo,contendo muitas vidas. As tardes passadas a ouvir histórias imutáveis de episódios muitas vezes revividos, mas que lhe despertavam sempre admiração. O seu passo decidido que com o tempo se tornara hesitante e confuso. O hospital.
A agulha continuava o seu trabalho, avançando cada vez mais, como que explorando, cavando fundo a sua pele. Uma imagem começava a formar-se.
Queria recordar apenas o homem forte, esforçado e honrado que ele fora, o seu porte direito, o seu sorriso, os momentos de manhã junto à praia enquanto liam o jornal. Mas apenas via imagens do hospital: ele deitado, pequeno entre os lençóis e a sua mão na dele; ele confuso e zangado, frustrado por não poder cuidar de si próprio; os choros e as mesas reverberando graças a punhos irados. A luz do sol iluminando uma cama branca, onde um corpo frágil e sereno repousava. De sorriso calmo ele olhara-o e uma sensação de paz e felicidade, tão simples e pura pairara naquele quarto confortando-os a ambos. O último dia em que o viu antes de...
Era por isso que agora uma agulha percorria linhas nas suas costas. Tinha procurado, fotografia atrás de fotografia, história atrás de história, nas "pegadas das suas lembranças", um imagem, um momento que captasse a sua essência, que o representasse tal como ele o via.
Era a sua homenagem à efemeridade de alguém que ficaria consigo para sempre...

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