Tuesday, November 18, 2008

Suporte


-Estou?
-És tu o meu suporte?
-O quê?

-Se és tu o meu suporte?
-...hum...não sei...

-Achas que és tu o meu suporte?
-...suporto roupas, pele, pelos. Prateleiras quando caiem, dossiers e pastas por caminhos, flores que se dobram com o peso da beleza. Suporto o céu sobre mim, as estrelas, todo um universo.

-Ah...ah...ah. Pois, sim, mas és tu o meu suporte?
-Suporto dores, maleitas várias, contradições. Aliás sinto uma dorzinha aqui no fundo das costas, não sei se não será da saída de ontem...Devias escolher percursos mais curtos para os nossos passeios.

-Ai agora a culpa é minha? A menina é que não parava de se queixar de não fazer nada senão estudar!Para a próxima escolhes tu o sítio e pronto! eheh Agora diz-me, és tu o meu suporte ou não?
-Suporto corações partidos, orgulhos remendados, tristeza.

-Mas és tu o meu suporte?
-Suporto hipocrisias, raivas mal direccionadas, sorrisos sem sabor. Tu tens cá um feitio ahah!

-Escândalo! Olha quem fala, menina do "não me chateies"! Diz-me lá, és tu o meu suporte?
-Suporto sons impensados, choros incontidos, risos sem razão. Mas porque perguntas isso?

-Não sei...Manias.És ou não o meu suporte?
-Hum...Suporto segredos estranhos, memórias humilhantes, confissões. Há alguma coisa que me queiras contar?

-Não, nada, a sério, só preciso de saber. És tu o meu suporte?
-Suporto telefonemas a meio da noite, desvios de percurso só por companhia. Que achas, miguita?

-Que fofa... És tu o meu suporte ou não?
-Ouço-te quando precisas, abraço-te mesmo quando não. Passamos tardes sentadas a falar.Sei o que pensas só por um olhar.

-Afinal, és tu o meu suporte?
-Sim.



Dedicado a todas as minhas amigas, mas em especial a ti Sarinha que me deste a palavra :)

Sunday, November 9, 2008

Silêncio


Sinto-me presa em palavras sem cor. Numa dor sem lágrimas ou razão.

Quero o céu azul permanentemente sobre mim e o vento frio batendo-me na cara.
Quero os meus cabelos sobre os olhos e as folhas amarelas caindo suaves quando olho pelas janelas.
Quero ver todos os finais do dia do alto de uma torre e poder gritar "Onde está o arco-íris?" sempre que me apetecer.
Porquê apenas muralhas à minha volta.
Porquê jardins fechados.
Porquê gatos pardos todas as noites e rituais que não cessam nunca!
Porque não inventar palavras ou espalhar cores à minha volta?
Porque não um deserto de margens brancas ou caminhos que não existem?
Quero percorrer os contornos de uma fotografia, sentir todos os seus detalhes.
Porquê tanto medo do toque. O que haverá de errado com a sinceridade?
Quero poder ser eu, apenas eu, simplesmente eu, inconfundivelmente eu, sem medo de nada.
Porque não tocar a lua e responder "vidro fosco" quando nos perguntam "como estás?"
Porque não usar flores verdes como único acessório e sorrir quando nos olhamos ao espelho.
Porque não desejar bons sonhos a todas as pessoas com que nos cruzamos ou desejar que as que conhecemos sonhem connosco mesmo que não o digamos.
Porquê conversas ocas quando o olhar basta por vezes.
Porque não admitir que o silêncio também é parte de nós.

Sunday, October 19, 2008

Sorriso


Quero ver as tuas cores,
Todo o espectro que te preenche,
Toda a luz que conténs e que libertas para mim.
Quero sentir os teus olhares,
Aquele com que olhas os sonhos,
O que usas para colorir o mundo,
O que empregas como desafio,
E o que tens perante mim.
Quero ser tempestade contigo,
Chover sobre as folhas mortas no chão,
Levantar saias e casacos,
Percorrer linhas de corpos quentes da corrida para protecção.
Quero ser o teu sorriso e tu o meu de volta.
Quero ser olhar frente a olhar,
Inifinito frente a infinito,
Compreensão.
Quero ser janelas abertas,
Prédios a ruir,
Rios subindo montanhas.
Quero contemplar a lua,
Redonda e grande no horizonte
E saber que a contemplas também...

Para a Raquel e para o João :)

Sunday, September 28, 2008

Lágrima


Eu choro aos domingos.
Quando o cinzento de tempestade chega e encobre as cores da estação. Quando o mar se revolta e começa a retomar o que é seu. Quando a leve brisa do verão começa a levar as folhas, indicando o começo da nova estação.
As manhã perdem a vitalidade, porque o sol não as preenche. As ruas tornam-se tristes pelo toc-toc solitário das pessoas que as percorrem. A minha janela, estéril, pois todas as cores abandonaram a sua vista.
É no final da semana ou no recomeço da nova, com o acumular destas imagens, os dedos frios das janelas salpicadas, que choro.
Pelas lágrimas redescubro o prazer de passear pelas ruas molhadas. Entrar em casa de cabelos revoltos pelo vento. Tocar os teus lábios húmidos da chuva, dos sentimentos, de nós. Pegar na tua mão gelada e aquecê-la junto ao peito. Pisar as folhas secas espalhadas pelo chão. Soltar risos ao céu carregado e cheio por cima de nós. Abraçar o calor do teu corpo nas portas protegidas da chuva. Sentir-me abençoada pela lágrima solitária que a chuva colocou na minha face para tu a retirares, suave, pela primeira vez...
Eu choro aos domingos para abraçar a felicidade do resto da semana...

Tuesday, September 9, 2008

Efemeridade


Sentia alívio enquanto a agulha lhe penetrava a pele fina sobre os ossos. Alívio porque aquela dor era externa e podia controlá-la. Conforme a agulha ia seguindo as linhas do decalque nas costas, a dor ia-se difundindo e misturando com a que as suas memórias traziam. A pele luzia vermelha realçando as negras formas da tatuagem. Cada nova investida da agulha levava-o mais fundo, a mais recordações. Pequenas lágrimas rolavam-lhe pela face cobrindo o chão de constelações de sal e mágoa.
O olhar profundo,contendo muitas vidas. As tardes passadas a ouvir histórias imutáveis de episódios muitas vezes revividos, mas que lhe despertavam sempre admiração. O seu passo decidido que com o tempo se tornara hesitante e confuso. O hospital.
A agulha continuava o seu trabalho, avançando cada vez mais, como que explorando, cavando fundo a sua pele. Uma imagem começava a formar-se.
Queria recordar apenas o homem forte, esforçado e honrado que ele fora, o seu porte direito, o seu sorriso, os momentos de manhã junto à praia enquanto liam o jornal. Mas apenas via imagens do hospital: ele deitado, pequeno entre os lençóis e a sua mão na dele; ele confuso e zangado, frustrado por não poder cuidar de si próprio; os choros e as mesas reverberando graças a punhos irados. A luz do sol iluminando uma cama branca, onde um corpo frágil e sereno repousava. De sorriso calmo ele olhara-o e uma sensação de paz e felicidade, tão simples e pura pairara naquele quarto confortando-os a ambos. O último dia em que o viu antes de...
Era por isso que agora uma agulha percorria linhas nas suas costas. Tinha procurado, fotografia atrás de fotografia, história atrás de história, nas "pegadas das suas lembranças", um imagem, um momento que captasse a sua essência, que o representasse tal como ele o via.
Era a sua homenagem à efemeridade de alguém que ficaria consigo para sempre...

Saturday, August 30, 2008

Fúcsia


Eu sou um fantasma que deambula por aí.

Caminho por entre as pessoas que percorrem os passeios. Arrasto uma sombra nos intervalos das árvores dos jardins. Sento-me escutando o vento que atravessa a cidade trazendo pedaços de vida. Quedo-me junto dos casais que planeiam futuros irreais feitos de fúcsia e de sonhos...
Sou um mero fantasma. Não me ouvem as folhas que piso ao avançar. Não me sentem as fontes quando pelas suas águas passo as mãos. Não me pressentem as pessoas enquanto lhes sussurro aos ouvidos, respondendo aos seus receios. Não me vêem os pássaros que debicam a calçada entre os meus pés.
Estendo-me no meio das estradas, sentindo o alcatrão vibrar enquanto os carros me atravessam.
Penduro-me de muros observando quotidianos desenvolverem-se quais flores agradecendo o sol e gatos passeando pelas ruas.
Passeio pelas praias deixando que os meus fragmentos de alma se purifiquem com a água salgada.
Recosto-me em tapetes de relva, com a terra pulsando por baixo de mim e procuro os astros no céu carmim do fim do dia.

Sou simplesmente um fantasma que aguarda o momento de se juntar a eles nesse infinito céu azul...

Friday, May 23, 2008

Tempo


Sinto um temporal à minha volta.
Os meus cabelos, revoltos no ar, movem-se como se fugindo de algo. Sinto o poder do vento, a sua força em cheio no meu corpo. Como que por oposição às arvores, vergando-se até ao limite, permaneço parada, estática no centro do temporal.

Fecho os olhos e em vez do barulho das folhas ou do som do vento, ouço apenas os clamores dentro de mim...Será que mais ninguém os ouve?

A paisagem modifica-se de repente. Vejo negras nuvens avançando determinadas e o cheiro a chuva e a electricidade paira no ar.

Tudo se encontra em suspenso, procurando onde avançar no Tempo.

Sunday, May 18, 2008

Universo


Tenho um quadrado negro à minha frente. Um negrume intenso de um vazio imenso e eu à sua frente. Olho-o sem entender. Olho-o sem me mover. Não consigo ver os seus limites, tal é a sua dimensão, mas sei (e sei-o interiormente) que é um quadrado suspenso à minha frente.

No mais primordial de mim, conheço esse vazio. Sei que é ele a minha origem. Sei que é ele o meu fim.

Afloro a sua superfície, toco-a, mas não a sinto e parte de mim desaparece. Parte de mim invisível e eu frente a um quadrado negro. Sem limites. Sem fronteiras. Uma janela infinita perante mim. Mas dando para onde? E se é uma janela donde avisto o negrume, onde me encontro eu?

Suspensa, parada, observo o todo, vendo apenas a densidade escura diante de mim. Ínfimos pontos de luz preenchem infinitamente o negrume frio que já foi quente depois de ser inexistente.

Tenho um quadrado infinito à minha frente, quase como se dentro de mim.

Afinal, quem me garante que o Universo não parece ser infinito apenas quando considerado do meu referencial e relativamente à minha escala de tempo?



Friday, April 11, 2008

Fantasia


Entrou. E apesar do ruído e da variedade de pessoas que preenchiam aquela sala, soube imediatamente que ele estava lá. Como por instinto. Não que o visse. Mas a sua voz, inconfundível, conseguia atravessar todas as inúteis conversas que ocupavam o espaço, trazendo até ela pedaços do seu pensamento.
À porta da sala esperava, mas pelo quê? Porque era tão difícil falar? O seu coração, num misto de timidez, medo e paixão, hesitava, pairando com a música suave que se ouvia por entre vozes. E assim esperava: ouvindo os sons característicos de uma sala cheia de pessoas, num primeiro momento; depois a música, como que escapando a estes sons e enaltecendo-os com a sua pureza. embalando-a; agora a sua voz, num nível mais profundo, como se só ela a pudesse atingir, como se só para ela a ouvir...
Mais uns passos. Estava no meio da sala e de novo hesitava. Era assim ultimamente, na incerteza de emoções...
Sentia saudades das suas conversas, sempre interessantes, quer fossem sobre música, política, sonhos ou gozando um com o outro. Sentia falta dos seus momentos juntos, silenciosamente observando o mundo... Sentia falta da empatia naquele olhar.
No canto da sala conversava animadamente com um grupo de amigos. Um aceno, mas ele não olhara para ela...Quem os rodeava como que em suspenso, esperando pela acção dos personagens principais. Ela ...talvez agora tivesse a possibilidade de uma certeza...

Um olhar furtivo e ela soube. Era tempo de abandonar aquela fantasia...

Silenciosamente, atravessou a sala e encaminhando-se para juntos dos seus amigos, disse-lhe adeus...

Thursday, February 14, 2008

Anuir

Lalalrala lalarala lalarala

Entoo a música devagar, como se ela se agarrasse à minha língua.

Solto-a lentamente, com uma fluidez viscosa,
Sinto-a despegar-se de mim e choro a sua perda.

Canto a perda que há-de vir, canto a perda do agora,
Canto a alegria de mim na tristeza de ser.
Canto a sequência do tempo,
Canto tudo o que vejo e não consigo sentir,
Canto tudo o que sinto e não consigo exprimir.

Grito a minha dor
Grito a tua dor

Grito a dor da terra cuja pulsação sinto
Aqui deitada, desamparada, iluminada, no meio do chão.

Grito Grito Grito

Penso…Eu não sou…
Não, nunca mais, quem julgava
Nem quem julgavam que fosse…

Vazia…
Cada vez mais…

E música que se solta de mim,
Pedaços de mim…Eu

Lalaralalalarala

Cada vez mais alto, cada vez mais forte, cada vez mais eu…

Ouçam a minha música,
Ouçam-me…simplesmente

No cinzento do dia acordei.
No cinzento de mim me encontrei.
Ao cinza anuir irei.

Observem o cinzento de mim…Levem-me um pouco de cor.

Wednesday, February 6, 2008

Justiça


Sento-me e escuto. Nada; ou melhor, nada de novo: sussurro de folhas, carros que passam, vozes, passos no corredor, música. Tento de novo, concentrando-me unicamente naquilo que não posso ouvir.

...Vazio...

Se conseguisse ouvir, aqui sentada, todos os gritos, súplicas e gemidos de sofrimento sentidos no mundo neste preciso momento, acho que ficava louca. Seria invadida por um desespero tal que julgaria fútil mais um breve inspirar sequer. Como pode a rotina que preenche os nossos dias fazer sentido após tal avassalador momento?
Talvez seja por isso que tudo o que ouço é o vazio. O Sofrimento humano como uma palavra censurada na música que é o Tempo. Um silêncio que torna esta emoção ainda mais óbvia, mas que nos permite simultaneamente fingir o seu desconhecimento.
É graças a este vazio que muitos de nós vivemos o nosso quotidiano sem considerar nada para além do nosso pequeno "mundo". É devido a este vazio de Justiça que muitos não acreditam em Deus. É na tentativa de preencher este vácuo que alguns gritam mais alto por aqueles que não ouvem.
É procurando fechar este orifício na nossa consciência que alguns se levantam para agir.

Aqui sentada, tento escutar.

Como não encontrando nada para além dos clamores dentro de mim, levanto-me e ligo o rádio...