Sunday, January 18, 2009

Escafandro


Acordou, vestiu-se e saiu de casa. Assim. Na rua não percebia porque o olhavam de forma tão estranha. Só porque usava um escafandro!

Este serve para nos permitir observar o todo que preenche o fundo dos nossos mares e sobreviver. Porque não servir para observar o mundo à tona e nos proteger? Era assim que se sentia agora, graças à desadequada vestimenta: à tona, finalmente.

Podia Ver o mundo, de tal forma os sons eram abafados pelas camadas de metal. Via-o em segmentos, pedaço por pedaço (rectângulo por rectângulo), analisando minuciosamente cada detalhe. Observava o mundo como se através de uma janela, pequena abertura no tempo. Via o mundo como uma sucessão de fotografias, perfeitamente enquadradas pelo visor do seu fato.

Caminhava, segurando cuidadosamente o tubo que lhe permitia respirar. Quando passava perto de uma flor, árvores, uma mulher que o agradava, era nesse sentido que o apontava. De resto, caminhava com o pequeno orifício apontado para o céu.

Não lhe importavam as caras de espanto, as expressões de gozo ou de desprezo, as interpelações várias, os olhares confusos, as preocupadas questões de "está perdido?", as mil e uma reacções a algo que perturba o quotidiano...Sabia para onde ia.

Todo um novo mundo se abria à sua frente e ele tudo guardava dentro de si. Enchia-se de imagens. Enchia-se de gestos. Enchia-se de luz! Uma linha curva, surpreendida entre a recta arquitectura de um edifício de escritórios; um perfil (in)discreto numa janela entreaberta; um olhar sonhador por entre carros e carros, parados e zangados, num sinal de trânsito; um lençol que tapa, envergonhado, a lingerie que seca ao sol; aquela pomba que atravessa a rua por entre pés atarefados.

Subia agora as escadas de madeira de um edifício de esquina e com cada passo que dava, mais o seu coração se enchia. Chegado à porta dela, esperou que esta o ajudasse a despir o escafandro e chorou...




fotografia por Fernando Figueiredo

1 comment:

Anonymous said...

Para mim, o teu melhor texto, e o melhor texto que li nos últimos tempos. Sinceramente.
Fantástico, adorei. Obrigada.

:)